terça-feira, 21 de outubro de 2008

Autonomia, liberdade e singularidade

Para Nietzsche, a autonomia individual é uma conquista que acontece ao longo de um processo prolongado de libertação da moral, para que o indivíduo soberano se realize como ser humano pela vontade própria que se torna capaz de fazer promessas.
A autonomia individual pode ser considerada condição para a autonomia social.
Assim, a autonomia é discutida, antes, como questão ética, e só então problematizada como questão política.
Conquista-se autonomia, segundo Foucault, a partir de uma libertação que ocorre pelo exercício individual de práticas de liberdade e desenvolvem a ética de um cuidado de si, o que torna socialmente possível a libertação de relações de poder, que se caracterizam por exercerem um controle e uma dominação opressora dos indivíduos.
Para Foucault, a tarefa crítica da filosofia seria sua função principal de questionar as relações de dominação em todos os campos da existência.
As relações de dominação que se tornam objeto de crítica para o pensamento filosófico são, no entanto, formas específicas, diferenciadas, de relações de poder. E é nas relações de poder que se encontram as práticas de liberdade.
Portanto, podemos experimentar uma espécie de deslocamento do significado de relação de poder.
Surge assim a possibilidade de se evitar os efeitos de dominação nos jogos estratégicos das relações de poder, através de relações de resistência.
Essa resistência que constitui as práticas de liberdade é que torna possível ocorrer a libertação mais ampla, que possibilita outras relações de poder.
E essa libertação, por sua vez, se torna condição política ou histórica para uma prática de liberdade, que, quando ocorre de modo refletido, passa a constituir uma ética, o que Foucault buscou compreender a partir da experiência dos gregos e romanos que se ocuparam com o cuidado de si.
Em sua qualidade ética, o cuidado de si implica relações complexas com os outros.
Se os gregos e romanos se ocuparam assim do cuidado de si como práticas de liberdade, por outro lado, posteriormente, as relações de poder nas instituições modernas não preservaram nas práticas de si a mesma autonomia.
A liberdade praticada através do cuidado de si, pensada como uma ética singular alcança então um significado político ao resistir à dominação nas relações de poder, visando o exercício de um domínio de si que se expressa no termo grego arché.
O que Foucault procurou mostrar foi, principalmente, como o próprio sujeito se constituía, sua autoformação, nessa ou naquela forma determinada, através de certas práticas de liberdade nas relações de poder, com as quais conquista o domínio de si, que caracteriza sua autonomia.
Já em relação à libertação social, Deleuze e Guattari propõem que se desencadeiem, através do que eles chamam de agenciamentos coletivos, uma singularização da produção de subjetividade que desterritorialize os modelos de subjetivação opressores.
Essa desterritorialização ocorre quando os agenciamentos se tornam dispositivos rizomáticos, isto é, ramificadores dos impulsos de subjetivação singularizantes.
Vemos assim que a autonomia requer práticas de liberdade que desencadeiem processos de singularização.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Dança e estética da existência

A DANÇA DO DEVIR
Ivan Maia de Mello

A vida, interpretada como algo em constante mutação, encontra na dança sua metáfora plena de fluência imprevisível, leveza incorporada, graça transfiguradora e criatividade lúdica.
Em seu vir a ser, a vida se mostra numa dinâmica de impulsos que tomam corpo na vivência do acontecimento, de modo que se pode pensá-la como uma improvisação em dança que, à medida que desenvolve um domínio de suas possibilidades, aproxima-se da plenitude da realização criadora.
O devir, simbolizado inicialmente por Heráclito como um rio no qual não se entra duas vezes no mesmo, é antes de tudo fluxo. Fluxo de impulsos, de forças, de energias. A fluência da energia vital nos acontecimentos é assim interpretada como correnteza. E assim como as correntezas dos rios com seus meandros é o devir da vida.
Zaratustra, personagem de Nietzsche em sua obra Assim falou Zaratustra, dizia que o devir queria que ele o ensinasse a falar. E falou assim: “Somente dançando sei falar em imagens das coisas mais valiosas”. A dança é, assim, o modo de Nietzsche simbolizar o devir. E se para ele o devir é uma dança é por ser constituído de acaso e caos, isto que Zaratustra diz ser preciso ter ainda dentro de si para dar à luz uma estrela dançante. Este é o devir cósmico do caos, a dança cósmica da criação do universo, ou, como disse Zaratustra, “a divina dança do devir”.
Aceitar a casualidade do devir é condição para exercer domínio sobre as possibilidades de tornar-se o que se é, isto é, dar ao devir o caráter do ser, como disse Nietzsche em um de seus fragmentos de anotações publicadas postumamente.
A imprevisibilidade da vida foi considerada por Nietzsche como qualidade inerente a esse processo de tornar-se o que se é, o qual foi enunciado originariamente pelo poeta grego Píndaro como um imperativo ontológico. Diz Nietzsche em sua autobiografia Ecce homo: “Que alguém se torne o que é pressupõe que não suspeite sequer remotamente o que é.” Isso é o que significa a fluência imprevisível que se atribuiu à vida e que torna necessário que se saiba e se possa improvisá-la como uma dança.